29 de março de 2024
Cinema

Crítica: "Bacurau" (2019)

Atenção: a crítica contém spoilers.

O Festival de Cannes 2019 foi um evento histórico para o cinema brasileiro; três diretores levaram prêmios na disputa: Karim Aïnouz com "A Vida Invisível" (o representante nacional para o Oscar 2020 de "Melhor Filme Internacional"), levando "Melhor Filme" na mostra "Um Certo Olhar"; e Juliano Dornelles & Kleber Mendonça Filho com "Bacurau", o primeiro tupiniquim a ganhar o Prêmio do Júri na história. Qual a semelhança entre os três? São todos nordestinos - Aïnouz é cearense enquanto a dupla Dornelles & KMF são pernambucanos.

"Bacurau" é o primeiro deles a estrear em solo brasileiro. Bacurau é um vilarejo nos confins do interior de Pernambuco. Teresa (Bárbara Colen) chega para o enterro da matriarca da cidade, ponto de virada no destino daquelas pessoas, coincidentemente ou não. Mas antes mesmo de dirigirmos pelas estradas de terra batida que nos levam a Bacurau, o longa começa bem distante, no espaço. Os créditos iniciais, ao som de "Não Identificado" na voz de Gal Costa, passeia pelas estrelas até focar no globo terrestre.

Nesse balé espacial, a câmera passa sem pudores por um satélite, flutuando despreocupadamente no que parece ser o céu acima do continental Brasil. Ao nos jogarmos no solo, o choque é gritante: demorei a conseguir por os pés no filme quando não entendia a relação de uma abertura tão contrastante com o meio em que a história se passa. Um letreiro avisa: estamos em um futuro próximo. As discrepâncias são propositais.

A própria música que nos dá boas-vindas já ilustra o que está por vir: "Minha paixão há de brilhar na noite no céu de uma cidade do interior como um objeto não identificado". A tecnologia dissonante está presente na vida dos habitantes de Bacurau, que estranham quando o vilarejo simplesmente some do mapa (literalmente): ao abrir um Google Maps da vida, não há rastro de Bacurau. Logo depois, os sinais de celulares caem misteriosamente, o caminhão pipa que abastece a população é baleado e pessoas começam a surgir assassinadas. E muito bom lembrar que, enquanto Teresa se aproxima de Bacurau, passa por um caminhão recheado com caixões tombado na estrada. Prelúdio para desgraças maior do que esse?

O primeiro ato do filme é bem lento, atento em construir uma atmosfera que em momento nenhum dá uma amostra do que existe por trás de cada cacto do sertão, todavia, dá para sentir o gosto de que há algo macabro, esperando o momento certo de dar as caras. O acontecimento que abre o segundo ato é a chegada de dois motoqueiros, que estão fazendo trilha pelo sertão.

"Vocês vieram conhecer o museu?", questiona uma das moradoras aos forasteiros, que declinam. "Ah mas o museu é muito bom", joga outra, e os visitantes continuam negando o convite, que logo vão embora. A cena é deveras emblemática e importantíssima para entendermos o que "Bacurau" quer nos dizer por trás da superfície árida do ecrã. Pensemos: o que toda cidade do interior desse país tem como lugar turístico principal: uma igreja. Bacurau também tem uma igrejinha muito simpática, contudo, ela não funciona eclesiasticamente: foi transformada em um depósito.

Os moradores de Bacurau não convidam os visitantes a irem na igreja da padroeira da região, e sim para irem até o museu. Eles são enfáticos quando afirmam a belezura que é a casinha com objetos e fotos do local, então, o que está sendo dito aqui? Quando a igreja é fechada e o museu se torna a atração turística, Bacurau está nos dizendo que o que mais importa para eles não é a religião, e sim a história.

A alegoria, muito sutil, é o primeiro grande reforço da obra em enaltecer o que há de valoroso naquela realidade: a identidade de seu povo. No futuro, as pessoas abrem mão da fé para valorizar a memória acima de tudo, afinal, é ela que molda a cultura de um local - e particulariza sua gente. Os visitantes, ao declinarem o convite de conhecer o museu, estão, narrativamente, informando sobre o pouco interesse na história. Soa familiar?

A câmera se desgruda de Bacurau e segue os motoqueiros, que estão com um grupo de norte-americanos em uma casa igualmente no meio do nada. São eles os responsáveis por todas os infortúnios quando estão criando um caos gradativo para gerar pânico e, assim, matar todos os habitantes de Bacurau. A cena é grotesca pelos absurdos que são jogados na mesa: os americanos estão em uma missão, garantindo pontos por cada pessoa assassinada. Tudo soa ainda pior quando há dois brasileiros ajudando a empreitada, encabeçada por uma figura misteriosa que fala nos pontos nos ouvidos dos "caçadores" gringos.

Os brasileiros informam que estão ajudando os americanos porque são do sul do país, a região rica e imigrante. "Nós somos quase como vocês", diz um deles, para a gargalhada dos estrangeiros, que dizem que ambos não são brancos. O estudo da xenofobia não poderia ser mais direto: tanto os "opressores" quanto os "oprimidos" (que bizarramente auxiliam os "opressores") tratam o nordestino como animais para o abate, seres sub-humanos que podem ser exterminados como divertimento.

A partir daqui, "Bacurau", que vinha sendo um drama, abocanha elementos do suspense e terror, principalmente dos slashers - os filmes com assassinos sanguinários caçando suas vítimas. Com a sacada da pontuação por morte, transformando o macabro em um jogo, conseguimos lembrar desde "O Albergue" (2005) até "A Deusa da Vingança" (2016). E, é claro, quando os peões são pontos no tabuleiro, "Bacurau" é um faroeste legítimo, alucinante e que faz qualquer um pular da cadeira.

O tratamento é bem binarista: Dornelles e KMF não estão aqui para tecer complexos aparatos psicológicos para seus personagens enquanto indivíduos com diferentes antecedentes. Os gringos são ruins, os habitantes de Bacurau são vítimas, e é assim mesmo, preto no branco. O que sustenta - com folga - essa dicotomia é tanto o cuidado do roteiro ao expor seus acontecimentos quanto o contexto histórico e social que "Bacurau" encontra em seu lançamento. Nada é gratuito.

A prova da falta de gratuidades é a pluralidade do povo de Bacurau: tem desde médicos e prostitutas até assassinos de aluguel e rebeldes renegados. Em algum momento, todos possuem diferenças que os fazem lutar entre si mesmo, como facções dentro do vilarejo, contudo, diante do perigo externo, a rabugenta Domingas de Sônia Braga (perfeita) e o cangaceiro não-binário de Silvero Pereira (mais perfeito ainda) sentam no mesmo lado da trincheira.

O filme ressignifica o cangaço enquanto unidade disposta a lutar contra o medo. O avanço da tropa gringa é recebido com preparação, e é milagroso ver o local escolhido para refugiar o povo de Bacurau: é a escola que garante a proteção de todos. O simbolismo alegórico mais uma vez dá um tapa na cara quando escolhe estrategicamente suas interpretações quanto ao real, e Bacurau pode ser fictícia, mas é governada por um prefeito inútil que controla desde a liberdade quanto os recursos, dados em muitas vezes de maneira precária. Não poderia ser mais verdadeiro.

"Bacurau" está lado a lado do que, sem modéstias, chamo de "Santíssima Trindade do cinema nacional moderno": "Que Horas Ela Volta?" (2015) de Anna Muylaerte e "Divino Amor" (2019) do também nordestino Gabriel Mascaro. Os três, cada um com sua abordagem, estudam, criticam e expõem os impropérios e desigualdades do nosso país de maneira igualmente brilhante e extremamente necessárias enquanto caminhamos para uma realidade que parece ter a cultura como elemento desimportante. Juntos, as três obras-primas tupiniquins não apenas comprovam a qualidade do nosso cinema como evocam o espírito de mudanças nesse país tão plural e que tem tanto a melhorar.

Se o povo de Bacurau, o vilarejo, dá o sangue para manter sua identidade viva contra quaisquer ameaças, "Bacurau", o filme, é uma dádiva que levanta a mão e grita "o cinema nacional resiste". E mais ainda: o cinema nordestino - que parece ser o polo principal da indústria contemporânea brasileira. Pondo seu local geográfico no protagonismo, é a terra que faz brotar o mandacaru que sabe onde estão os valores mais importantes de uma sociedade, e que não tem medo de descer a peixeira em quem tenta oprimi-la ou apagá-la. No faroeste psicodélico e distópico de "Bacurau", o Nordeste não vai pensar duas vezes antes de cair na capoeira, então não se meta.

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